O MENINO E A BORBOLETA ENCANTADA
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Mil e uma noites haviam se passado desde que o Pássaro Encantado partira.
Então ele voltou. Era madrugada. A Menina o viu tão logo a luz alegre do sol
fez brilhar as suas penas. Ela o estava esperando. Os apaixonados esperam
sempre... Ah! Como foi bom aquele abraço de saudade! Desta vez as suas penas
estavam coloridas com as cores das florestas sobre as quais voara. O Pássaro
Encantado pôs-se então a cantar os seres das matas, árvores, orquídeas,
regatos, cachoeiras, elfos e gnomos... A Menina não se cansava de ouvir.
Ouvia e pedia que ele contasse de novo as mesmas estórias, do mesmo jeito. E
assim viviam os dois se amando por dias e dias. Mas sempre chegava o momento
em que o Pássaro dizia: “Menina, o vôo me chama. Preciso partir. É preciso
partir para que o nosso amor não tenha fim. O amor precisa de saudade para
viver...” A Menina chorava baixinho mas compreendia. E assim o amor acontecia
entre partidas e retornos.
As asas do Pássaro pareciam
incansáveis. Estavam sempre à procura de lugares desconhecidos. Ele já
visitara montanhas encantadas, planícies geladas, lagos, rios, abismos,
castelos, uma cidade construída na divisa entre a realidade e a fantasia, um
reino onde era proibido estar triste, lugares sagrados, vulcões, o país dos
dragões verdes e dos gigantes amarelos, jardins, selvas verdes, mares azuis,
praias brancas... Sobre todos esses lugares ele lhe contara estórias. A
Menina não tinha asas. Mas ela voava nas estórias que o Pássaro lhe contava.
Mas os anos foram se passando.
O Pássaro envelheceu. Suas asas já não eram as mesmas da juventude. E também
os seus sonhos já não eram os sonhos da mocidade. Deseja-se partir quando é
manhã. Mas quando o sol se põe o que se deseja é voltar. E assim um desejo novo
surgiu no coração do Pássaro crepuscular: voltar...
O sol acabara de se pôr. Vênus
brilhava no horizonte. Foi então que a Menina o viu. Suas penas pareciam
incendiadas pelo sol. Depois do abraço ele disse para a Menina algo que nunca
lhe dissera antes: “Menina, conte-me as estórias da minha ausência...” E foi
assim que, pela primeira vez, o Pássaro se calou e a Menina lhe contou
estórias.
Por muitos dias o Pássaro e a
Menina gozaram do seu amor. Mas o Pássaro já não era o mesmo. Algo acontecera
com os seus olhos. Já não procuravam horizontes longínquos. Eles olhavam as
coisas simples que havia na sua casa, coisas que sempre estiveram lá, mas que
ele nunca havia visto. Não vira porque o seu coração estava em outro lugar. É
o coração que nos diz o que é para ser visto.
Aconteceu então, num dia como
os outros, o Pássaro abraçou a Menina, e ele sentiu, nas costas da Menina,
algo que nunca sentira.
“Menina, o que é isso?” ele
perguntou. Ela enrubesceu e respondeu:
“Asas, pequenas asas... Estão
crescendo nas minhas costas...”
E para que ele as visse baixou
sua blusa. E ele viu. Sim, pequenas asas, delicadas asas, asas de borboleta,
coloridas, diáfanas, frágeis... E ele percebeu que a Menina se preparava para
voar. Sua Menina se transformara numa borboleta...
O Pássaro sorriu uma mistura de
alegria e de tristeza. Sentiu um leve tremor nos lábios, aquele mesmo tremor
que vira nos lábios da Menina a primeira vez que lhe dissera: “Eu quero
partir...” Chegara a hora em que ela partiria e ele ficaria. Ele seria,
então, aquele que esperaria. Como é dolorido ficar! A solidão de quem
fica é maior que a solidão de quem parte! Quem parte vai para mundos novos,
cheios de maravilhas desconhecidas. Quem fica, fica num espaço vazio, de
objetos velhos, esperando, esperando, contando os dias.
O momento da despedida chegou.
A Menina, flutuando com suas grandes asas de borboleta, disse ao Pássaro:
“Preciso partir...”
O Pássaro teve vontade de
chorar. Queria lhe dizer: “Não vá. Eu a amo tanto.” Mas não disse. Lembrou-se
de que essas haviam sido as palavras que a Menina lhe dissera, quando ele
partira pela primeira vez. O Pássaro temia por ela. Suas asas eram tão
frágeis, asas de borboleta que quebram-se atoa. Queria estar com ela para
consolá-la na solidão e no cansaço. Mas não fez gesto algum. Ele sabia que os
abraços que não se abrem são mortais para o amor.
Ele estendeu a sua mão num
gesto de despedida. A Borboleta voou e nela pousou. Ele se aproximou dela,
como se fosse beijá-la. Mas não beijou. Apenas soprou suas asas suavemente.
“Voa, minha linda Borboleta”, ele disse, se despedindo. A Borboleta
bateu suas asas, voou e desapareceu na distância.
Então, ao olhar de novo para si
mesmo ele não se reconheceu. Já não era o Pássaro Encantado de penas
coloridas. Transformara-se num Menino... Um Menino que não sabia voar. Um
Menino que esperava a volta da Borboleta Encantada. Então ele voaria nas asas
das estórias que ela haveria de lhe contar...
* * *
Esta “estória” tem uma
“história”. Trata-se da continuação da estória “A Menina e o Pássaro
Encantado” (Edições Loyola) que escrevi para minha filha pequena, Raquel.
Devia ser o ano de 1980. Eu iria fazer uma viagem longa para o exterior e ela
chorava. Eu devia ter 46 anos, bastante cabelo preto e energia para
conquistar o mundo. Os anos se passaram, minhas asas se cansaram e agora nem
tenho energia e nem vontade de conquistar o mundo. Ainda tenho prazer em
viajar mas as viagens freqüentemente me cansam. Não é cansaço físico. É um
cansaço na alma, com aquele descrito no primeiro capítulo do livro de
Eclesiastes. Quando todo mundo está viajando eu quero mesmo é ficar. Karl
Jaspers dizia que não viajava porque na casa dele estavam todas as coisas
dignas de serem conhecidas. Minha loucura ainda não chegou perto da dele. Mas
o fato é que há, na minha casa, uma infinidade de coisas interessantíssimas
que eu deveria gastar tempo em conhecer. Tantos poemas e contos que não li,
tantos livros de arte, tantos CDs que ainda não ouvi... E há também Pocinhos
do Rio Verde, meu mosteiro... Esse é o destino dos pais. Há um momento em que
os filhos batem as asas e se vão. Os pássaros sabem disso e não
reclamam. Muitos pais e muitos avós tratam de fazer lugares deliciosos
para seus filhos e netos passarem os fins de semana! Na viagem para Pocinhos
do Rio Verde passo sempre defronte a um “Sítio do Vovô”. Imagino o Vovô
e a Vovó sozinhos na varanda do sítio, esperando os filhos e os netos que não
vêm. Eles estarão provavelmente em algum clube ou praia... Há um momento na
vida em que o destino dos pais é esperar...Os apaixonados são aqueles que
esperam...
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Por: Rubia Barp, Andreia Teixeira e Juliana Bisatto
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