quinta-feira, 21 de novembro de 2013

O LOBO E O FALCÃO

O LOBO E O FALCÃO


(Outro final para a história do feiticeiro que transformou dois amantes em falcão e lobo. O feitiço fica para sempre, mas a transformação acontece para ambos no mesmo horário. )
“Ele, guerreiro, cavalgava um cavalo negro. Seus olhos eram tranquilos, seu rosto era triste, seus cabelos eram dourados como a luz do Sol, e a sua voz só se ouvia depois de longos silêncios.
Ela, diáfana como a Lua, cabelos negros como a noite e voz mansa como a luz das estrelas.
Eles muito se amavam. Mas havia naquela terra um feiticeiro das trevas. Ele se apaixonou pela moça-lua. Quis tê-la para si mesmo. Mas ela amava o guerreiro e repeliu os gestos do feiticeiro. Este, enfurecido, lançou sobre os amantes um feitiço: estariam condenados, pelo resto dos seus dias, a nunca se tocarem. A mulher seria como a Lua. Só apareceria à noite, depois de o Sol se pôr. Durante o dia ela seria um falcão branco. E seu amado seria como o Sol: só apareceria durante o dia. Durante a noite ele seria um lobo negro.
E assim aconteceu. Durante o dia o guerreiro cavalgava o seu cavalo levando no ombro sua amada, o falcão branco. Durante a noite o falcão voltava a ser mulher e ficava ao lado do seu amado, lobo negro.
Mas havia um breve momento encantado quando eles quase se tocavam. Ao pôr-do-sol, quando a luz do dia se misturava com o escuro da noite, o falcão voltava a ser mulher e o guerreiro se transformava em lobo. Ao nascer do Sol, quando o escuro da noite se misturava com a luz do dia, o lobo voltava a ser guerreiro e a mulher se transformava em falcão. Nesse brevíssimo momento os dois apareciam um ao outro como sempre tinham sido… Suas mãos se estendiam, uma querendo tocar a outra — mas o toque era impossível porque antes que suas mãos se tocassem a metamorfose acontecia.
O guerreiro amava o falcão. Ele sabia que dentro do falcão vivia sua amada, encantada. Ele acariciava suas penas — mas um falcão não é uma mulher. Ele a carregava movido pela esperança de que, um dia, o feitiço fosse quebrado.
A mulher amava o lobo. Ela sabia que dentro do lobo vivia o guerreiro de olhos profundos que ela amava, encantado. Ela acariciava o seu pêlo negro — mas um lobo não é um homem. Ela o acariciava movida pela esperança de que, um dia, o feitiço seria quebrado.
Mas o amor é mais forte que os feitiços maus. E aconteceu que, um dia, depois de uma luta horrenda, o feiticeiro foi morto e o feitiço foi quebrado. E o guerreiro voltou a ser o guerreiro que sempre fora, e a mulher voltou a ser a mulher que sempre fora. E as suas mãos puderam se tocar e tudo foi alegria e eles se casaram e viveram felizes para sempre…”
Assim termina a estória tal como me foi contada, com um final feliz.
Mas eu, que também sou feiticeiro, imaginei um outro final para esta mesma estória. E é esse outro fim que passo a contar.
O guerreiro, não podendo suportar a tristeza da sua condição, resolveu procurar um feiticeiro bom que tivesse poder maior que o feiticeiro mau. Ele se chamava Merlin. O guerreiro foi a sua morada-caverna, no alto de uma montanha, levando ao ombro o seu falcão. Lá chegando contou-lhe a sua desgraça e formulou o seu pedido: queria que ele e sua amada deixas sem de ser lobo e falcão e voltassem a ser homem e mulher para que pudessem se amar.
Merlin fez um grande silêncio e lhe disse: “Não posso atender o seu pedido porque isso seria a sua perdição, o fim do seu amor. A magia nada cria. A magia só tem o poder para trazer das profundezas aquilo que lá existe. Você, no fundo da sua alma, é um lobo selvagem. A sua amada, no fundo da sua alma, é um falcão selvagem. Ela o ama porque vê, no fundo dos seus olhos mansos, um lobo que anda sem medo por florestas escuras. E você a ama porque vê, no fundo dos seus olhos mansos, um falcão que voa sem medo nas alturas. Se eu, por um feitiço, destruir o selvagem que há em você e o selvagem que há nela, não mais haverá mistérios dentro dos seus olhos. Vocês se transformarão em animais domésticos: um cão que abana o rabo para ganhar um osso, uma pata que rebola sem poder voar. Domesticados, vocês se transformarão em seres banais. Você não terá estórias das matas escuras para lhe contar nem ela terá estórias de vôos pelos picos gelados das montanhas para lhe contar. E o seu amor se transformará num tédio interminável.”
O guerreiro chorou. “Então, nosso amor está condenado?” “Não”, disse Merlin. “Há esperança, mas não do jeito como vocês querem. Não vou desfazer o feitiço. Vou rearranjar o feitiço. Quando os primeiros raios de Sol iluminarem o horizonte você se transformará em lobo e ela se transformará em falcão. Você irá para o mistério das matas e ela para os mistérios dos céus. Vocês serão selvagens, ao mesmo tempo, cada um no seu mundo. Quando o Sol se puser e a primeira estrela aparecer, você voltará a ser o guerreiro-sol e ela voltará a ser a mulher-lua. Aí então, vocês se encontrarão…”
Ditas essas palavras, Merlin ficou silencioso. Acendeu a fogueira na sua caverna porque estava ficando frio. O Sol estava se pondo. A noite se aproximava. Aceso o fogo, ele pronunciou palavras de bruxedo e despediu o guerreiro com o seu falcão.
O guerreiro, falcão no ombro, começou a longa descida da montanha para a planície. Seu rosto estava iluminado pelos últimos raios do Sol que se punha. E foi então que, no meio do céu, ele viu a primeira estrela que aparecia…

Rubem Alves (postado por tina)

Por: Rubia Barp, Andreia Teixeira e Juliana Bisatto

terça-feira, 12 de novembro de 2013

As sem-razões do amor

As sem-razões do amor

Eu te amo porque te amo,
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.

Carlos Drummond de Andrade

Por: Rubia Barp

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

A Pipoca


A culinária me fascina. De vez em quando eu até me atrevo a cozinhar. Mas o fato é que sou mais competente com as palavras que com as panelas. Por isso tenho mais escrito sobre comidas que cozinhado. Dedico-mo a algo que poderia ter o nome de "culinária literária". Já escrevi sobre as mais variadas entidades do mundo da cozinha: cebolas, ora-pro-nobis, picadinho de carne com tomate feijão e arroz, bacalhoada, suflês, sopas, churrascos. Cheguei mesmo a dedicar metade de um livro poético-filosófico a uma meditação sobre o filme A festa de Babette, que é uma celebração da comida como ritual de feitiçaria. Sabedor das minhas limitações e competências, nunca escrevi como chef. Escrevi como filósofo, poeta, psicanalista e teólogo - porque a culinária estimula todas essas funções do pensamento.
As comidas, para mim, são entidades oníricas. Provocam a minha capacidade de sonhar. Nunca imaginei, entretanto, que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu. A pipoca, milho mirrado, grãos redondos e duros, me pareceu uma simples molecagem, brincadeira deliciosa, sem dimensões metafísicas ou psicanalíticas. Entretanto, dias atrás, conversando com uma paciente, ela mencionou a pipoca. E algo inesperado na minha mente aconteceu. Minhas idéias começaram a estourar como pipoca. Percebi, então, a relação metafórica entre a pipoca e o ato de pensar. Um bom pensamento nasce como uma pipoca que estoura, de forma inesperada e imprevisível. A pipoca se revelou a mim, então, como um extraordinário objeto poético. Poético porque, ao pensar nelas, as pipocas, meu pensamento se pôs a dar estouros e pulos como aqueles das pipocas dentro de uma panela.
Lembrei-me do sentido religioso da pipoca. A pipoca tem sentido religioso? Pois tem. Para os cristãos, religiosos são o pão e o vinho, que simbolizam o corpo e o sangue de Cristo, a mistura de vida e alegria (porque vida, só vida, sem alegria, não é vida...). Pão e vinho devem ser bebidos juntos. Vida e alegria devem existir juntas. Lembrei-me, então, de lição que aprendi com a Mãe Stella, sábia poderosa do candomblé baiano: que a pipoca é a comida sagrada do candomblé...
A pipoca é um milho mirrado, subdesenvolvido. Fosse eu agricultor ignorante, e se no meio dos meus milhos graúdos aparecessem aquelas espigas nanicas, eu ficaria bravo e trataria de me livrar delas. Pois o fato é que, sob o ponto de vista do tamanho, os milhos da pipoca não podem competir com os milhos normais. Não sei como isso aconteceu, mas o fato é que houve alguém que teve a idéia de debulhar as espigas e colocá-las numa panela sobre o fogo, esperando que assim os grãos amolecessem e pudessem ser comidos. Havendo fracassado a experiência com água, tentou a gordura. O que aconteceu, ninguém jamais poderia ter imaginado. Repentinamente os grãos começaram a estourar, saltavam da panela com uma enorme barulheira. Mas o extraordinário era o que acontecia com eles: os grãos duros quebra-dentes se transformavam em flores brancas e macias que até as crianças podiam comer. O estouro das pipocas se transformou, então, de uma simples operação culinária, em uma festa, brincadeira, molecagem, para os risos de todos, especialmente as crianças. É muito divertido ver o estouro das pipocas!
E o que é que isso tem a ver com o candomblé? É que a transformação do milho duro em pipoca macia é símbolo da grande transformação porque devem passar os homens para que eles venham a ser o que devem ser. O milho da pipoca não é o que deve ser. Ele deve ser aquilo que acontece depois do estouro. O milho da pipoca somos nós: duros, quebra-dentes, impróprios para comer, pelo poder do fogo podemos, repentinamente, nos transformar em outra coisa - voltar a ser crianças!
Mas a transformação só acontece pelo poder do fogo. Milho de pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca, para sempre. Assim acontece com a gente. As grandes transformações acontecem quando passamos pelo fogo. Quem não passa pelo fogo fica do mesmo jeito, a vida inteira. São pessoas de uma mesmice e dureza assombrosas. Só que elas não percebem. Acham que o seu jeito de ser é o melhor jeito de ser. Mas, de repente, vem o fogo. O fogo é quando a vida nos lança numa situação que nunca imaginamos. Dor. Pode ser fogo de fora: perder um amor, perder um filho, ficar doente, perder um emprego, ficar pobre. Pode ser fogo de dentro. Pânico, medo, ansiedade, depressão - sofrimentos cujas causas ignoramos. Há sempre o recurso aos remédios. Apagar o fogo. Sem fogo o sofrimento diminui. E com isso a possibilidade da grande transformação.
Imagino que a pobre pipoca, fechada dentro da panela, lá dentro ficando cada vez mais quente, pense que sua hora chegou: vai morrer. De dentro de sua casca dura, fechada em si mesma, ela não pode imaginar destino diferente. Não pode imaginar a transformação que está sendo preparada. A pipoca não imagina aquilo de que ela é capaz. Aí, sem aviso prévio, pelo poder do fogo, a grande transformação acontece: pum! - e ela aparece como uma outra coisa, completamente diferente, que ela mesma nunca havia sonhado. É a lagarta rastejante e feia que surge do casulo como borboleta voante.
Na simbologia cristã o milagre do milho de pipoca está representado pela morte e ressurreição de Cristo: a ressurreição é o estouro do milho de pipoca. É preciso deixar de ser de um jeito para ser de outro. "Morre e transforma-te!" - dizia Goethe.
Em Minas, todo mundo sabe o que é piruá. Falando sobre os piruás com os paulistas descobri que eles ignoram o que seja. Alguns, inclusive, acharam que era gozação minha, que piruá é palavra inexistente. Cheguei a ser forçado a me valer do Aurélio para confirmar o meu conhecimento da língua. Piruá é o milho de pipoca que se recusa a estourar. Meu amigo William, extraordinário professor-pesquisador da Unicamp, especializou-se em milhos, e desvendou cientificamente o assombro do estouro da pipoca. Com certeza ele tem uma explicação científica para os piruás. Mas, no mundo da poesia as explicações científicas não valem. Por exemplo: em Minas "piruá" é o nome que se dá às mulheres que não conseguiram casar. Minha prima, passada dos quarenta, lamentava: "Fiquei piruá!" Mas acho que o poder metafórico dos piruás é muito maior. Piruás são aquelas pessoas que, por mais que o fogo esquente, se recusam a mudar. Elas acham que não pode existir coisa mais maravilhosa do que o jeito delas serem. Ignoram o dito de Jesus: "Quem preservar a sua vida perde-la-á." A sua presunção e o seu medo são a dura casca do milho que não estoura. O destino delas é triste. Vão ficar duras a vida inteira. Não vão se transformar na flor branca macia. Não vão dar alegria para ninguém. Terminado o estouro alegre da pipoca, no fundo a panela ficam os piruás que não servem para nada. Seu destino é o lixo.
Quanto às pipocas que estouraram, são adultos que voltaram a ser crianças e que sabem que a vida é uma grande brincadeira...
(Correio Popular, 29/08/1999)
Rubem Alves
Por: Rubia Barp, Andreia Teixeira e Juliana Bisatto

A Vida de Rubem Alves – Um Breve Relato




Pedagogo, poeta e filósofo de todas as horas, cronista do cotidiano, contador de estórias, ensaísta, teólogo, acadêmico, autor de livros para crianças, psicanalista, Rubem Alves é um dos intelectuais mais famosos e respeitados do Brasil.
Nascido no dia 15 de setembro de 1933 em Dores da Boa Esperança, uma pequena cidade do sul do estado de Minas Gerais, Rubem Alves, educado no seio de uma família protestante, muito cedo teve de se confrontar com a sua diferença. O destino inscrito na sua diferença leva-o, depois do Ginásio, a estudar teologia no seminário Presbiteriano do Sul, um dos mais conhecidos seminários evangélicos da América Latina.
"Meu pai era rico, quebrou, ficou pobre. Tivemos de nos mudar. Dos tempos de pobreza só tenho memórias de felicidade. Conheci o sofrimento quando melhoramos de vida e nos mudamos para o Rio de Janeiro. Meu pai, com boas intenções, me matriculou num dos colégios mais famosos do Rio. Foi então que me descobri caipira. Meus colegas cariocas não perdoaram meu sotaque mineiro e me fizeram motivo de chacota. Grande solidão, sem amigos. Encontrei acolhimento na religião. Religião é um bom refúgio para os marginalizados."
Concluído o seminário, torna-se pastor de uma comunidade presbiteriana no interior de Minas e casa com Lídia Nopper, com quem teve três filhos, Sérgio, Marcos e Raquel. Depressa, porém, o pastor tomou consciência de que a sua ousadia evangélica o levava para terrenos difíceis.
"Eu achava que religião não era para garantir o céu, depois da morte, mas para tornar esse mundo melhor, enquanto estamos vivos. Claro que minhas ideias foram recebidas com desconfiança..."
Em 1963, viaja para Nova York para fazer uma pós-graduação. É aí que o Golpe Militar de 31 de março de 1964 o surpreende, nas vésperas de conclusão do mestrado. Defendida a tese ("A theological interpretation of the meaning of the Revolution in Brazil"), regressa à sua paróquia, em Lavras, onde deixara mulher e filhos.
Neste período viveu sob o medo intenso da Ditadura Militar. Acusado de ser subversivo, foi listado injustamente entre pastores procurados pelos militares. Era o preço de pensar de forma não ortodoxa. Viveu o cansaço da tensão.
"Foi então que a United Presbyterian Church – EUA (Igreja Presbiteriana Unida dos Estados Unidos da América do Norte), em combinação com o presidente do seminário teológico de Princeton, me convidaram a fazer um doutoramento. Não me esqueço nunca do momento preciso quando o avião decolou. Respirei fundo e sorri, descontraído, na deliciosa euforia da liberdade. Ainda hoje, quando um avião decola, sinto de novo aquele momento."
O exílio dura até 1968. Doutorado, volta ao Brasil para se despedir da Igreja Presbiteriana e experimentar o desemprego. Em 1969, uma Faculdade do interior (a Faculdade de Filosofia de Rio Claro) acolhe-o. Aí permaneceu até 1974, ano em que finalmente ingressa no Instituto de Filosofia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde fez a maior parte da sua carreira acadêmica até se aposentar nos primórdios da década de 1990.
Autor de uma vastíssima obra (a sua bibliografia conta já mais de 120 títulos), Rubem Alves é um dos escritores mais célebres da língua portuguesa.
"Golpes duros na vida me fizeram descobrir a literatura e a poesia. Ciência dá saberes à cabeça e poderes para o corpo. Literatura e poesia dão pão para corpo e alegria para a alma. Ciência é fogo e panela: coisas indispensáveis na cozinha. Mas poesia é o frango com quiabo, deleite para quem gosta...Busco escrever simplesmente o que me dá na cabeça e no coração, embora ainda me sinta amarrado por antigas mortalhas acadêmicas.
Com a literatura e a poesia comecei a realizar meu sonho fracassado de ser músico: comecei a fazer música com palavras. Leituras de prazer especial: Nietzsche, T.S. Eliot, Kierkegaard, Camus, Lutero, Agostinho, Angelus Silésius, Guimarães Rosa, Saramago, Tao Te Ching, o livro de Eclesiastes, Bachelard, Octávio Paz, Borges, Barthes, Michael Ende, Fernando Pessoa, Adélia Prado, Manoel de Barros. Pintura: Bosch, Brueghel, Grünnenwald, Monet, Dalí, Larsson. Música: canto gregoriano, Bach, Beethoven, Brahms, Chopin, César Franck, Keith Jarret, Milton, Chico, Tom Jobim.
Em 1984 iniciou o curso para formação em Psicanálise. Teve sua clínica até 2004. Seu contato com os pacientes incrementou seu conteúdo que, transformados em palavras, compuseram diversas de suas crônicas sobre o cotidiano.
"Sou psicanalista, embora heterodoxo. Minha heterodoxia está no fato de que acredito que no mais profundo do inconsciente mora a beleza. Com o que concordam Sócrates, Nietzsche e Fernando Pessoa. Exerço a arte com prazer. Minhas conversas com meus pacientes são a maior fonte de inspiração que tenho para minhas crônicas."

Residindo há várias décadas em Campinas, Rubem Alves é um apaixonado pela vida, um compulsivo fruidor da vida. Afirma que ainda não escreveu todos os textos e todos os livros que traz no pensamento, ainda não sentiu, amou, brincou e riu o bastante, ainda não respondeu a todas as cartas e mensagens dos amigos, ainda não provou de todas as ausências e de todas as saudades, ainda não espreitou todos os mistérios do mundo e dele próprio...

"Eu não tenho medo de morrer... Só tenho pena. A vida é tão boa..."
Texto adaptado a partir da apresentação feita por Ademar Ferreira dos Santos, educador português, para a versão portuguesa do livro "Por uma Educação Romântica".

FONTE: http://www.rubemalves.com.br/biografia.php

Por: Rubia Barp, Andreia Teixeira e Juliana Bisatto

O Menino e a Borboleta Encatada


 O MENINO E A BORBOLETA ENCANTADA



          Mil e uma noites haviam se passado desde que o Pássaro Encantado partira. Então ele voltou. Era madrugada. A Menina o viu tão logo a luz alegre do sol fez brilhar as suas penas. Ela o estava esperando. Os apaixonados esperam sempre... Ah! Como foi bom aquele abraço de saudade! Desta vez as suas penas estavam coloridas com as cores das florestas sobre as quais voara. O Pássaro Encantado pôs-se então a cantar os seres das matas, árvores, orquídeas, regatos, cachoeiras, elfos e gnomos... A Menina não se cansava de ouvir. Ouvia e pedia que ele contasse de novo as mesmas estórias, do mesmo jeito. E assim viviam os dois se amando por dias e dias. Mas sempre chegava o momento em que o Pássaro dizia: “Menina, o vôo me chama. Preciso partir. É preciso partir para que o nosso amor não tenha fim. O amor precisa de saudade para viver...” A Menina chorava baixinho mas compreendia. E assim o amor acontecia entre partidas e retornos.
As asas do Pássaro pareciam incansáveis. Estavam sempre à procura de lugares desconhecidos. Ele já visitara montanhas encantadas, planícies geladas, lagos, rios, abismos, castelos, uma cidade construída na divisa entre a realidade e a fantasia, um reino onde era proibido estar triste, lugares sagrados, vulcões, o país dos dragões verdes e dos gigantes amarelos, jardins, selvas verdes, mares azuis, praias brancas... Sobre todos esses lugares ele lhe contara estórias. A Menina não tinha asas. Mas ela voava nas estórias que o Pássaro lhe contava.
Mas os anos foram se passando. O Pássaro envelheceu. Suas asas já não eram as mesmas da juventude. E também os seus sonhos já não eram os sonhos da mocidade. Deseja-se partir quando é manhã. Mas quando o sol se põe o que se deseja é voltar. E assim um desejo novo surgiu no coração do Pássaro crepuscular: voltar...
O sol acabara de se pôr. Vênus brilhava no horizonte. Foi então que a Menina o viu. Suas penas pareciam incendiadas pelo sol. Depois do abraço ele disse para a Menina algo que nunca lhe dissera antes: “Menina, conte-me as estórias da minha ausência...” E foi assim que, pela primeira vez, o Pássaro se calou e a Menina lhe contou estórias.
Por muitos dias o Pássaro e a Menina gozaram do seu amor. Mas o Pássaro já não era o mesmo. Algo acontecera com os seus olhos. Já não procuravam horizontes longínquos. Eles olhavam as coisas simples que havia na sua casa, coisas que sempre estiveram lá, mas que ele nunca havia visto. Não vira porque o seu coração estava em outro lugar. É o coração que nos diz o que é para ser visto.
Aconteceu então, num dia como os outros, o Pássaro abraçou a Menina, e ele sentiu, nas costas da Menina, algo que nunca sentira.
“Menina, o que é isso?” ele perguntou. Ela enrubesceu e respondeu:
“Asas, pequenas asas... Estão crescendo nas minhas costas...”
E para que ele as visse baixou sua blusa. E ele viu. Sim, pequenas asas, delicadas asas, asas de borboleta, coloridas, diáfanas, frágeis... E ele percebeu que a Menina se preparava para voar. Sua Menina se transformara numa borboleta...
O Pássaro sorriu uma mistura de alegria e de tristeza. Sentiu um leve tremor nos lábios, aquele mesmo tremor que vira nos lábios da Menina a primeira vez que lhe dissera: “Eu quero partir...” Chegara a hora em que ela partiria e ele ficaria. Ele seria, então, aquele que esperaria.  Como é dolorido ficar! A solidão de quem fica é maior que a solidão de quem parte! Quem parte vai para mundos novos, cheios de maravilhas desconhecidas. Quem fica, fica num espaço vazio, de objetos velhos, esperando, esperando, contando os dias.
O momento da despedida chegou. A Menina, flutuando com suas grandes asas de borboleta, disse ao Pássaro: “Preciso partir...”
O Pássaro teve vontade de chorar. Queria lhe dizer: “Não vá. Eu a amo tanto.” Mas não disse. Lembrou-se de que essas haviam sido as palavras que a Menina lhe dissera, quando ele partira pela primeira vez. O Pássaro temia por ela. Suas asas eram tão frágeis, asas de borboleta que quebram-se atoa. Queria estar com ela para consolá-la na solidão e no cansaço. Mas não fez gesto algum. Ele sabia que os abraços que não se abrem são mortais para o amor.
Ele estendeu a sua mão num gesto de despedida. A Borboleta voou e nela pousou. Ele se aproximou dela, como se fosse beijá-la. Mas não beijou. Apenas soprou suas asas suavemente. “Voa, minha linda Borboleta”, ele disse, se despedindo.  A Borboleta bateu suas asas, voou e desapareceu na distância.
Então, ao olhar de novo para si mesmo ele não se reconheceu. Já não era o Pássaro Encantado de penas coloridas. Transformara-se num Menino... Um Menino que não sabia voar. Um Menino que esperava a volta da Borboleta Encantada. Então ele voaria nas asas das estórias que ela haveria de lhe contar...
 * * *
Esta “estória” tem uma “história”. Trata-se da continuação da estória “A Menina e o Pássaro Encantado” (Edições Loyola) que escrevi para minha filha pequena, Raquel. Devia ser o ano de 1980. Eu iria fazer uma viagem longa para o exterior e ela chorava. Eu devia ter 46 anos, bastante cabelo preto e energia para conquistar o mundo. Os anos se passaram, minhas asas se cansaram e agora nem tenho energia e nem vontade de conquistar o mundo. Ainda tenho prazer em viajar mas as viagens freqüentemente me cansam. Não é cansaço físico. É um cansaço na alma, com aquele descrito no primeiro capítulo do livro de Eclesiastes. Quando todo mundo está viajando eu quero mesmo é ficar. Karl Jaspers dizia que não viajava porque na casa dele estavam todas as coisas dignas de serem conhecidas. Minha loucura ainda não chegou perto da dele. Mas o fato é que há, na minha casa, uma infinidade de coisas interessantíssimas que eu deveria gastar tempo em conhecer. Tantos poemas e contos que não li, tantos livros de arte, tantos CDs que ainda não ouvi... E há também Pocinhos do Rio Verde, meu mosteiro... Esse é o destino dos pais. Há um momento em que os filhos batem as asas e se vão. Os pássaros sabem disso e não reclamam.  Muitos pais e muitos avós tratam de fazer lugares deliciosos para seus filhos e netos passarem os fins de semana! Na viagem para Pocinhos do Rio Verde passo sempre  defronte a um “Sítio do Vovô”. Imagino o Vovô e a Vovó sozinhos na varanda do sítio, esperando os filhos e os netos que não vêm. Eles estarão provavelmente em algum clube ou praia... Há um momento na vida em que o destino dos pais é esperar...Os apaixonados são aqueles que esperam...

Por: Rubia Barp, Andreia Teixeira e Juliana Bisatto

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

A Menina e o Pássaro Encantado - Interpretação de texto

A MENINA E O PÁSSARO ENCANTADO – RUBEM ALVES
Era uma vez uma menina que tinha um pássaro como seu melhor amigo.
Ele era um pássaro diferente de todos os demais: era encantado.
Os pássaros comuns, se a porta da gaiola ficar aberta, vão-se embora para nunca mais voltar. Mas o pássaro da menina voava livre e vinha quando sentia saudades… As suas penas também eram diferentes. Mudavam de cor. Eram sempre pintadas pelas cores dos lugares estranhos e longínquos por onde voava. Certa vez voltou totalmente branco, cauda enorme de plumas fofas como o algodão…
 Menina, eu venho das montanhas frias e cobertas de neve, tudo maravilhosamente branco e puro, brilhando sob a luz da lua, nada se ouvindo a não ser o barulho do vento que faz estalar o gelo que cobre os galhos das árvores. Trouxe, nas minhas penas, um pouco do encanto que vi, como presente para ti…
E, assim, ele começava a cantar as canções e as histórias daquele mundo que a menina nunca vira. Até que ela adormecia, e sonhava que voava nas asas do pássaro.
Outra vez voltou vermelho como o fogo, penacho dourado na cabeça.
 Venho de uma terra queimada pela seca, terra quente e sem água, onde os grandes, os pequenos e os bichos sofrem a tristeza do sol que não se apaga. As minhas penas ficaram como aquele sol, e eu trago as canções tristes daqueles que gostariam de ouvir o barulho das cachoeiras e ver a beleza dos campos verdes.
E de novo começavam as histórias. A menina amava aquele pássaro e podia ouvi-lo sem parar, dia após dia. E o pássaro amava a menina, e por isto voltava sempre.
Mas chegava a hora da tristeza.
 Tenho de ir  dizia.
 Por favor, não vás. Fico tão triste. Terei saudades. E vou chorar…— E a menina fazia beicinho…
 Eu também terei saudades  dizia o pássaro. — Eu também vou chorar. Mas vou contar-te um segredo: as plantas precisam da água, nós precisamos do ar, os peixes precisam dos rios… E o meu encanto precisa da saudade. É aquela tristeza, na espera do regresso, que faz com que as minhas penas fiquem bonitas. Se eu não for, não haverá saudade. Eu deixarei de ser um pássaro encantado. E tu deixarás de me amar.
Assim, ele partiu. A menina, sozinha, chorava à noite de tristeza, imaginando se o pássaro voltaria. E foi numa dessas noites que ela teve uma ideia malvada: “Se eu o prender numa gaiola, ele nunca mais partirá. Será meu para sempre. Não mais terei saudades. E ficarei feliz…”
Com estes pensamentos, comprou uma linda gaiola, de prata, própria para um pássaro que se ama muito. E ficou à espera. Ele chegou finalmente, maravilhoso nas suas novas cores, com histórias diferentes para contar. Cansado da viagem, adormeceu. Foi então que a menina, cuidadosamente, para que ele não acordasse, o prendeu na gaiola, para que ele nunca mais a abandonasse. E adormeceu feliz.



Acordou de madrugada, com um gemido do pássaro…
 Ah! menina… O que é que fizeste? Quebrou-se o encanto. As minhas penas ficarão feias e eu esquecer-me-ei das histórias… Sem a saudade, o amor ir-se-á embora…
A menina não acreditou. Pensou que ele acabaria por se acostumar. Mas não foi isto que aconteceu. O tempo ia passando, e o pássaro ficando diferente. Caíram as plumas e o penacho. Os vermelhos, os verdes e os azuis das penas transformaram-se num cinzento triste. E veio o silêncio: deixou de cantar.
Também a menina se entristeceu. Não, aquele não era o pássaro que ela amava. E de noite ela chorava, pensando naquilo que havia feito ao seu amigo…
Até que não aguentou mais.
Abriu a porta da gaiola.




 Podes ir, pássaro. Volta quando quiseres…
 Obrigado, menina. Tenho de partir. E preciso de partir para que a saudade chegue e eu tenha vontade de voltar. Longe, na saudade, muitas coisas boas começam a crescer dentro de nós. Sempre que ficares com saudade, eu ficarei mais bonito. Sempre que eu ficar com saudade, tu ficarás mais bonita. E enfeitar-te-ás, para me esperar…
E partiu. Voou que voou, para lugares distantes. A menina contava os dias, e a cada dia que passava a saudade crescia.
 Que bom  pensava ela  o meu pássaro está a ficar encantado de novo…
E ela ia ao guarda-roupa, escolher os vestidos, e penteava os cabelos e colocava uma flor na jarra.
 Nunca se sabe. Pode ser que ele volte hoje…
Sem que ela se apercebesse, o mundo inteiro foi ficando encantado, como o pássaro. Porque ele deveria estar a voar de qualquer lado e de qualquer lado haveria de voltar. Ah!
Mundo maravilhoso, que guarda em algum lugar secreto o pássaro encantado que se ama…
E foi assim que ela, cada noite, ia para a cama, triste de saudade, mas feliz com o pensamento: “Quem sabe se ele voltará amanhã….”
E assim dormia e sonhava com a alegria do reencontro.
* * *
Para o adulto que for ler esta história para uma criança:
Esta é uma história sobre a separação: quando duas pessoas que se amam têm de dizer adeus…
Depois do adeus, fica aquele vazio imenso: a saudade.
Tudo se enche com a presença de uma ausência.
Ah! Como seria bom se não houvesse despedidas…
Alguns chegam a pensar em trancar em gaiolas aqueles a quem amam. Para que sejam deles, para sempre… Para que não haja mais partidas…
Poucos sabem, entretanto, que é a saudade que torna encantadas as pessoas. A saudade faz crescer o desejo. E quando o desejo cresce, preparam-se os abraços.
Esta história, eu não a inventei.
Fiquei triste, vendo a tristeza de uma criança que chorava uma despedida… E a história simplesmente apareceu dentro de mim, quase pronta.
Para quê uma história? Quem não compreende pensa que é para divertir. Mas não é isso.
É que elas têm o poder de transfigurar o quotidiano.
Elas chamam as angústias pelos seus nomes e dizem o medo em canções. Com isto, angústias e medos ficam mais mansos.
Claro que são para crianças.
Especialmente aquelas que moram dentro de nós, e têm medo da solidão…
As mais belas histórias de Rubem Alves
Lisboa, Edições Asa, 2003


INTERPRETAÇÃO DA HISTÓRIA



01.  Sobre o sentido geral do texto, é correto afirmar que:

a) Narra-se uma história, em que há a presença de dois personagens: um pássaro e uma menina, além do narrador;

b) Narra-se uma história, em que há a presença de três personagens: um pássaro branco, um pássaro vermelho e uma menina; além do narrador;

c) Narra-se uma história, em que há a presença de quatro personagens: um pássaro branco, um pássaro vermelho, um pássaro preso que perde as asas e uma menina; além do narrador;

d) Narra-se uma história, em que há a presença de dois personagens: um pássaro e uma menina, mas não há presença de narrador;

e) Narra-se uma história, em que há a presença de três personagens: um pássaro branco, um pássaro vermelho e uma menina, sem presença de narrador;

02. Há um sentimento que nutre a relação existente entre os personagens do texto. Assinale a alternativa que cita esse sentimento.

a) Frustração

b) Vingança

c) Desamparo

d) Saudade

e) Distância

03. Este sentimento, que nutre a relação entre as personagens, faz com que o pássaro adquira uma característica especial. Qual é essa característica?

a) Possuir penas vermelhas

b) Possuir penas brancas e brilhantes

c) Ser belo como nenhum outro pássaro

d) Ser divertido

e) Ser um pássaro encantado

04. Por outro lado, diz o pássaro que a ausência do sentimento que nutre a relação entre os personagens leva à fuga de um outro sentimento, que é:

a) O amor

b) A saudade

c) A decepção

d) O encantamento

e) A paixão

05. Assinale a alternativa cuja frase, considerando as relações de sentido, traduz a ideia central do texto.

a) Saudade dói e mata a gente

b) Saudade faz crescer o amor e deixa tudo mais bonito

c) Só se é livre, quando se sente saudade

d) É preciso ser livre, para que se possa amar

e) Sem amor, não há liberdade

06. A frase Mas o pássaro da menina voava livre e vinha quando sentia saudades indica:

a) Uma característica comum a todos os pássaros

b) Uma característica exclusiva do pássaro, personagem desta história

c) Uma característica física do pássaro

d) Uma característica comum a poucos pássaros

e) Uma característica comum a muitos pássaros

07. A expressão certa vez em certa vez voltou totalmente branco indica noção de:

a) Modo

b) Quantidade

c) Lugar

d) Característica

e) Tempo

08. Vocabulário:

Encantado:

Longínquas:

Estalar:

Penacho:

Cachoeira:

09. Interpretação do texto:
Responda:
a) Por que o pássaro da menina era deferente?

b) o que fazem os pássaros comuns se a porta da gaiola ficar aberta?

c) Quanto ao aspecto físico, como o narrador descreve o pássaro?

d) Desenhe o pássaro de acordo com a legenda e escreva o que ele contou do:
  
  
Lugar frio                                                           desenhar
Menina eu...                                                      desenhar
Lugar quente                                                    desenhar


e) Retire do texto o parágrafo que fala do amor entre o pássaro e a menina.

f) O que você achou do pássaro encantado? Por quê? 



Fonte: